Artigo: Lesão do músculo obturador externo em atletas de futebol profissional




 

INTRODUÇÃO

O futebol é o esporte mais praticado no mundo, com aproximadamente 200.000 profissionais e 240 milhões de praticantes(1). Este esporte caracteriza-se por uma alta exigência física com variações do metabolismo aeróbio e anaeróbio, determinado por movimentos de alta intensidade com mudanças de direção, frenagens, acelerações, giros e piques, o que torna o esporte uma grande fonte de incidência de lesões(2).

Diversos estudos têm analisado os diferentes tipos de lesões que acometem o jogador de futebol, tanto o atleta profissional quanto o amador ou atuando em diferentes níveis de competitividade. Estes estudos encontraram diferenças nos resultados devido às características das populações, nomenclaturas e a metodologia das pesquisas. No entanto, em todos os estudos as lesões musculares (LM) apareceram com uma grande incidência(3-9).

As LM são os traumas mais comuns que ocorrem nos esportes com uma incidência que varia de 10% a 55% de todos os tipos de lesões, sendo que 90% delas compreendem os estiramentos e as contusões(10,11). As LM podem ser geradas por um mecanismo traumático - contusões, estiramentos ou lacerações, ou atraumático - dor muscular tardia e cãibras(10-13). Geralmente, os estiramentos musculares envolvem músculos superficiais e biarticulados como o reto femoral, semitendinoso, bíceps femoral e gastrocnêmios(10,11,14).

Dentre os inúmeros estudos citados, nenhum cita a lesão do músculo obturador externo. Na medida em que este é um músculo pequeno e monoarticular, sua incidência provavelmente é baixa e pouco documentada na literatura. Desta maneira, o presente estudo tem como objetivo apresentar quatro casos de estiramentos do Obe em uma equipe profissional de futebol no ano de 2006.

 

METODOLOGIA

Este é um estudo retrospectivo, descritivo, não randomizado, com amostra não probabilística intencional. O mesmo foi realizado no setor de Fisioterapia do Departamento Médico Profissional do Clube Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e aceito pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Centro Brasileiro de Estudos Sistêmicos.

Os dados foram coletados a partir de um programa de armazenamento denominado Sistema de Preparação Desportiva (SPD). Este programa foi criado e desenvolvido pelo setor de informática do clube e armazena dados referentes ao nome, diagnóstico, mecanismo de trauma, história clínica, tempo de afastamento e evolução.

Os critérios de inclusão foram os atletas com diagnóstico de imagem para estiramento do Obe e que constavam no programa SPD da categoria profissional no ano de 2006. O critério de exclusão foi não apresentar estiramento do Obe. Aos atletas participantes do estudo foi entregue um termo de consentimento livre informado.

Como rotina do departamento de fisioterapia, na época da lesão, os indivíduos foram submetidos a uma avaliação médica, seguida de uma avaliação fisioterapêutica, em que foram registrados dados como história da lesão, queixa principal, classificação da dor, inspeção, palpação e realização de testes para região do quadril. Durante os testes foi verificada a amplitude de movimento (ADM) passiva, o movimento ativo livre e ativo resistido do quadril. Os testes foram realizados em decúbito dorsal, ventral e sentado, com os membros inferiores pendentes.

Após avaliação médica e fisioterapêutica, foi requisitado um exame de RNM, realizado no Centro de Diagnóstico por Imagem do Hospital Mãe de Deus de Porto Alegre entre o período de 12 a 24 horas da lesão, no qual todos os atletas apresentaram imagem compatível com ruptura parcial do músculo Obe, com hematoma ao longo do músculo (figura 1). Com o diagnóstico confirmado, os indivíduos foram encaminhados ao setor de fisioterapia, onde foram submetidos ao tratamento fisioterapêutico. O protocolo de tratamento foi dividido em três fases, nas quais todos os sujeitos foram submetidos às mesmas condutas fisioterapêuticas, conforme descrito na tabela 1.

 

 

 

 

RESULTADOS

No ano de 2006 foram registradas quatro lesões por estiramento do músculo Obe, de um total de 28 lesões por estiramento muscular. Estes casos ocorreram em três atletas, sendo que um deles apresentou a lesão bilateralmente.

Todos os atletas referiram dor difusa na região adutora para o quadril acometido, sendo que em nenhum dos casos foi identificado um ponto doloroso palpável. Aos testes de função para articulação do quadril, todos os indivíduos relataram dor moderada durante os movimentos resistidos de rotação lateral e rotação medial do quadril (tabela 2). O mecanismo de trauma predominante foi o movimento de rotação lateral do tronco sobre o fêmur em cadeia cinética fechada (gesto que promoveu uma rotação medial excêntrica de quadril), sendo que em um dos casos não foi possível precisar o movimento que causou a lesão.

 

 

Os atletas permaneceram afastados das competições enquanto estavam em tratamento fisioterapêutico, sendo que o tempo de afastamento foi diferente entre os casos (figura 2). Mesmos assim, cada atleta cumpriu todas as fases do protocolo de tratamento e, após, foi liberado ao treinamento com o grupo, sem queixas e nos mesmos níveis funcionais de pré-lesão.

 

 

DISCUSSÃO

As lesões de estiramento muscular aparecem em muitos estudos relacionados à incidência das lesões no futebol. Chomiak et al.(9) encontraram uma incidência de 15 (15%) estiramentos musculares em 97 lesões severas documentadas, ao analisarem 398 atletas de futebol da República Tcheca, em um período de um ano. Peterson et al.(8) analisaram 264 jogadores de diferentes idades e níveis de jogo durante um ano e encontraram 183 estiramentos musculares em 558 lesões documentadas. Junge et al.(4) analisaram a incidência de lesões durante os torneios da FIFA e Jogos Olímpicos de 1998-2001 e encontraram 901 lesões, das quais 10% foram estiramentos. Em outro estudo durante a Copa do Mundo de 2002 o mesmo autor registrou 25 (15%) estiramentos de um total de 171 lesões documentadas. Em todos estes estudos a preocupação dos autores foi documentar os tipos de lesão relacionados ao futebol, sem verificar o grupamento muscular acometido com precisão.

Dois estudos apontaram as lesões por estiramento musculares em seus respectivos músculos envolvidos. Volpi et al.(7) em estudo retrospectivo de cinco anos na liga principal italiana, encontraram 30% (103) de LM e, destas, 17% (58) foram estiramentos. Neste mesmo trabalho os autores apontaram uma incidência de 32% (33 casos) no quadríceps, 28,1% (29 casos) nos isquiotibiais, 19,4% (20 casos) nos adutores, 12,6% (13 casos) nos gastrocnêmios e 2,9% (três casos) abdominais. Uma incidência de 4,9% foi atribuída aos músculos sartório, glúteo e iliopsoas. Em outro trabalho, utilizando a RNM para avaliar as LM, Dias et al.(11) encontraram 36 estiramentos musculares (83,7%) de um total de 43 exames revistos, sendo que 33% foram estiramentos de grau II. Todas as lesões por estiramento foram divididas de acordo com o grupo muscular acometido, em que o músculo gastrocnêmio medial apresentou cinco lesões, seguido do músculo reto femoral com quatro lesões, adutor longo com duas e músculo sóleo com uma lesão. No entanto, estes estudos não encontraram nenhuma lesão do músculo Obe e parece não haver relato desta lesão em atletas de futebol.

Tendo em vista a grande incidência de lesões por estiramento demonstradas no futebol, existe a necessidade de uma melhor investigação no que se refere ao grupo muscular lesado, para identificar uma possível lesão no músculo Obe, já que ela pode ser confundida com uma lesão de adutores da coxa. Esta afirmação é corroborada pelos nossos achados, porque em todos os relatos havia uma queixa de dor na região adutora, sendo difundida para o quadril. Isto pode ser devido à inervação comum dos músculos adutores da coxa e o Obe. Os músculos adutor magno, curto e longo da coxa, assim como o músculo Obe, são inervados pelo nervo obturatório, oriundo do plexo lombo-sacro(15).

Considerando que as lesões por estiramento apresentam um ponto doloroso e palpável(10-12,16) e que a região adutora era o local referido pelo atleta, nenhum de nossos casos apresentou este ponto na região adutora. Este dado clínico não poderia ser evidenciado, já que a lesão não era em um músculo adutor e sim no músculo Obe, um músculo profundo da pelve e quadril(17,18).

Todos os casos apresentaram dor na região do quadril durante os movimentos passivos, ativos e resistidos de rotação lateral e medial. As alterações no comprimento do músculo, estirando o sítio da lesão, eram provocadas pelas as ações do Obe durante os testes. No caso 3 o atleta referia dor principalmente quando retirava o pé do solo e realizava as rotações do quadril em posição neutra. Segundo Smith et al.(18), o Obe, em conjunto com outros músculos rotadores, realiza movimentos de rotação lateral do quadril principalmente na posição neutra. Os mesmos autores também relatam que, quando o quadril está em flexão de 90º, ele passa a ter um componente de abdução maior que o de rotação lateral. No entanto, Kapandji(17) afirma que o Obe é um rotador lateral principalmente com o quadril flexionado. Esta afirmação vem ao encontro dos achados em nossos testes de rotações em decúbito dorsal com quadril a 90º, em que foi relatado dor. Este autor também concede uma participação na flexão e adução do quadril ao Obe. Esta afirmação também corrobora os relatos de dor durante os testes resistidos para adução do quadril.

As lesões por estiramento acontecem principalmente em mecanismos excêntricos que ocorrem durante os movimentos de alta velocidade e ou intensidade, gerados durante o gesto esportivo(2,10,12,14,16). Em dois casos o mecanismo excêntrico foi gerado através de um movimento de rotação do tronco sobre o quadril envolvido, quando o membro inferior estava preso ao gramado. Isto fez com que o músculo Obe fosse submetido a uma ação muscular de grande energia sendo incapaz de conter o movimento. Isto pode ser entendido devido à sua capacidade limitada de gerar torque, já que a sua linha de força passa próximo do centro de rotação da articulação e ao contrair-se gera apenas compressão articular(18). Segundo Kapandji(17), sua linha de ação é semelhante à direção do colo femoral, tornando-o com características de um músculo coaptador da cabeça femoral no acetábulo. Cohen e Abdalla(12) relatam que os músculos monoarticulados e profundos são responsáveis pela postura e tonicidade.

A respeito do arco de movimento principalmente na posição neutra do quadril, parece haver uma pequena amplitude para dissipar a energia do movimento excêntrico, já que as suas rotações apresentam uma amplitude de zero a 40 graus de rotação interna e de zero a 60 graus de rotação lateral, quando comparadas a outros movimentos do quadril. Hughes et al.(15) relatam que, com a mudança no posicionamento do quadril de neutro para flexionado, o arco de movimento alcançado para as rotações medial e lateral do quadril pode alcançar de zero a 70 e de zero a 90 graus, respectivamente.

Diferentes autores têm relatado que as lesões por estiramento muscular ocorrem principalmente em músculos biarticulados(7,12-14) e em movimentos realizados em cadeia cinética aberta(14); em contrapartida, em nossos achados, o mecanismo de lesão predominante foi em cadeia cinética fechada e o músculo envolvido foi um músculo monoarticular.

Segundo Cross et al.(19) e Dias et al.(11), a presença de coleção líquida, caracterizando o hematoma, sugere uma ruptura muscular e apresenta um sinal hiperintenso nas imagens T1 e T2. Todos os casos deste estudo foram submetidos ao exame de RNM, para confirmação da lesão. O exame de RNM foi fundamental para determinar o diagnóstico de estiramento muscular do Obe, visto que o exame clínico não foi conclusivo. Os laudos associados à nossa interpretação da imagem classificaram as lesões como sendo uma ruptura parcial do músculo Obe.

Yoon et al.(3) pesquisaram as incidências de lesões em torneios asiáticos e verificaram que 45,3% das lesões de estiramento afastaram os atletas por mais de quatro dias de treinos e jogos. Lopes et al.(13), em estudo clínico das LM, relatam que o tempo mínimo necessário para obter a cura clínica e a reabilitação funcional oscila entre duas a três semanas. Os mesmos autores relatam que a presença de equimose, 24h após a lesão, determina uma lesão grave, tendo um prognóstico de seis a oito semanas. Cross et al.(19) avaliaram o prognóstico de LM do quadríceps com RNM e observaram que as lesões do tendão central levaram em média um tempo de reabilitação de 27 dias. Verral et al.(20), em estudo comparativo entre os achados clínicos e RNM para o prognóstico das lesões de estiramento dos isquiotibiais, encontraram que os atletas ficaram afastados durante 27 dias em média. Em nosso estudo, os atletas permaneceram afastados por no máximo 21 dias das competições. Parece ter havido uma redução no tempo de recuperação dos atletas conforme os profissionais do setor de fisioterapia se familiarizavam com a lesão. Do primeiro para o último caso houve uma redução de oito dias de afastamento. Como condição para alta, consideramos que todos os atletas realizassem testes funcionais que simulavam as situações de jogo, sem queixas durante e após os mesmos.

 

CONCLUSÃO

Diversos estudos têm investigado a incidência de lesões no futebol e parece não haver nenhum relato de lesão por estiramento do músculo Obe. A lesão do Obe pode ser confundida com uma lesão dos músculos adutores do quadril, devido à localização da dor relatada pelo indivíduo. A avaliação clínica deve basear-se no relato do atleta para o entendimento do mecanismo de trauma. A realização dos testes funcionais para os rotadores do quadril é essencial para evidenciar uma possível dor difusa, descartando uma lesão do grupamento adutor do quadril, já que a localização do músculo Obe impede um exame palpatório preciso. É fundamental a utilização de um exame de RNM para localizar, classificar e avaliar a extensão da lesão, assim garantindo um diagnóstico preciso e permitindo uma abordagem terapêutica segura, com prognóstico favorável para evolução da lesão.

 

REFERÊNCIAS

1. Dvorak J, Junge A. Football injuries and physical symptoms: a review of the literature. Am J Sports Med 2000;28:3-9.         [ Links ]

2. Witvrouw E, Danneels L, Asselman P, D'Have T, Cambier D. Muscle Flexibility as a risk factor for developing muscle injuries in male professional soccer players: a prospective study. Am J Sports Med 2003;31:41-6.         [ Links ]

3. Yoon YS, Chai M, Shin DW. Football injuries at Asian tournament. Am J Sports Med 2006;32:36S-42S.         [ Links ]

4. Junge A, Dvorak J, Graf-Baumann T, Peterson L. Football injuries during FIFA tournaments and the Olympic games, 1998-2001: development and implementation of an injury-reporting system. Am J Sports Med 2004;32:80S-9S.         [ Links ]

5. Junge A, Dvorak J, Graf-Baumann T. Football injuries during the World Cup 2002. Am J Sports Med 2004;32:23-7.         [ Links ]

6. Junge A, Dvorak J. Soccer injuries: a review on incidence and prevention. Sports Med 2004;34:929-38.         [ Links ]

7. Volpi P, Melegati G, Tornese D, Bandi M. Muscle strains in soccer: a five-year survey of an Italian major league team. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc 2004;12:482-5.         [ Links ]

8. Peterson L, Junge A, Chomiak J, Graf-Baumann T, Dvorak J. Incidence of football injuries and complaints in different age groups skill-level groups. Am J Sports Med 2000;28:S 51-7.         [ Links ]

9. Chomiak J, Junge A, Peterson L, Dvorak J. Severe injuries in football players: influencing factors. Am J Sports Med 2000;28:58-68.         [ Links ]

10. Järvinen TAH, Järvinen Tln, Kããriãinen M, Kalimo H, Järvinen M. Muscle injuries: biology and treatment. Am J Sports Med 2005;33:745-64.         [ Links ]

11. Dias EP, Marchiori E, Coutinho Jr AC, Domingues RC, Domingues RC. Avaliação por ressonância magnética das injúrias musculares traumáticas. Radiol Bras Brasil 2000;34:327-31.         [ Links ]

12. Cohen M, Abdalla RJ. Lesões nos esportes - Diagnóstico, prevenção e tratamento. Rio de Janeiro: Ed. Revinter; 2003.         [ Links ]

13. Lopes AS, Kattan R, Costa S, Moura CE. Estudo clínico e classificação das lesões musculares. Rev Bras Ortop 1993;28:707-17.         [ Links ]

14. Orchard J. Biomechanics of muscle strain injury. NZ J Sports Medicine 2002;30:92-8.         [ Links ]

15. Hughes PE, Hsu JC, Matava MJ. Hip anatomy and biomechanics in the athlete. Sports Med Arthrosc 2002;10:103-14.         [ Links ]

16. Clebis NK, Natali MRN. Lesões musculares provocadas por exercícios excêntricos. R Bras Ci e Mov 2001;9:47-53.         [ Links ]

17. Kapandji AI. Fisiologia articular, volume 2: esquemas comentados da mecânica humana. 5ª ed. Rio de Janeiro: Médica Panamericana, 2000.         [ Links ]

18. Smith LK, Weiss El, Lehmkuhl LD. Cinesiologia clínica de Brunnstrom. 5ª ed. São Paulo: Manole, 1997.         [ Links ]

19. Cross TM, Gibbs N, Houang MT, Cameron M. Acute quadriceps muscle strains: magnetic resonance imaging features and prognosis. Am J Sports Med 2004;32:710-9.         [ Links ]

20. Verral GM, Slavotinek JP, Barnes PG, Fon GT. Diagnostic and prognostic value of clinical findings in 83 athletes with posterior thigh injury. Am J Sports Med 2003;31:969-73.         [ Links ]

Henrique Gonçalves ValenteI; Felipe Osório MarquesI,III; Luciano Da Silva De Souza; Roberto Trápaga AbibI; Daniel Cury RibeiroIII,IV

IDepartamento Médico Profissional - Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense - Porto Alegre - RS, Brasil
IILaboratório de Pesquisa do Exercício - Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Porto Alegre - RS
IIIEscola Superior de Educação e Saúde - Curso de Fisioterapia - Faculdade da Serra Gaúcha - Caxias do Sul - RS, Brasil
IVSchool of Physiotherapy - University of Otago - Otago, New Zealand




Dicas do mês para estudantes e profissionais de Fisioterapia


Tecnologia do Blogger.